ponto hum
sim! estou de volta ao humdeabril
aliás, o hum deste abril já passou, então conte-se a minha idade com um ano a mais - e quem não aproveitou a desculpa pra gente se falar, pode vir, ainda está em tempo!...
aos que o fizeram, !muchas gracias! queridos. voltem sempre : ]
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assim como nunca pretendi escrever aqui diariamente, nunca quis deixar o hum tanto tempo sem novidade.
já cogitei muitas pautas desde o último post, umas 4 ou 5 que eu não podia ter deixado de escrever.
e agora que de fato volto, vou transcrever (nome bonito e antiquado para ctrl+c - ctrl+v) um texto meu - na verdade um comentário que postei ontem numa discussão da comunidade literária 'Espancadores de Teclados'.
obs.1: a comunidade fica no orkut, e sobre orkut falaremos depois
obs.2: a discussão era sobre a dificuldade em se iniciar um texto. em princípio se referia a textos literários, mas de fato abrangia qualquer texto minimamente elaborado.
um cara de nome Emílio - não O Emílio - citou a seguinte consideração do Kafka:
"no primeiro momento, o começo de todo conto é ridículo. parece impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma, possa manter-se vivo."
feitas as o-b-esses, vamos ao texto:
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começar e começar [4/27/2004 6:44 PM]
o ponto é que começar a escrever não é começar a história.
mesmo quem não é monomaníaco como o Fábio - e eu - já costuma ter alguma idéia em mente quando mete o dedo no teclado.
só que o texto final mesmo vai se moldando no percurso, ou seja: quanto mais do texto você já escreveu, mais você tem uma referência para o que ainda falta redigir.
eu acho que era a isso que o Kafka se referia: como saber se aquele início, que é uma parte tão estruturalmente importante de um todo, estará de acordo com esse todo, se o resto ainda não existe concretamente?
comigo o que costuma acontecer é o seguinte: tenho uma idéia supimpa :] , penso nela por um tempão (que pode ser dias ou meses ou mais), daí eu sento pra escrever um começo e acho ele fantástico; continuo e, quando termino, invariavelmente acho o tal início muito aquém do resto do texto! ou inadequado, ou hesitante, enfim.
e daí o negócio é re-começar, reescrever o início - agora que já conheço o 'corpo mutilado' ao qual ele pertencia.
por isso não vejo muito problema em começar: escrever é um ato cíclico.
o duro de escrever algo muito grande é manter o todo em mente, enquanto dá atenção a uma pequena parte.
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bem, esse era o texto. ah, e o Fábio citado é, obviamente, outro escritor participante da discussão.
com relação a 'enxergar o todo enquanto constrói a parte' eu sinto que omiti dos demais espancadores de teclados alguns fatos importantes para entender como eu lido com isso:
acontece que eu pretendia ser escritor (quando criança mesmo), depois dramaturgo, em seguida ator, cantor, e finalmente, compositor - não descartando a análise musical e cultural como atividade paralela e complementar.
e acontece que, acompanhando esse percurso - ou mesmo motivando-o - estiveram sempre as minhas experimentações com os diferentes tipos de texto.
foi assim que passei de escrever crônicas cotidianas, a histórias ficcionais relativamente longas, e então peças de teatro e roteiros, passando depois para os contos e a poesia, para desembocar - um tanto mais fortuitamente do que o percurso pode dar a entender - na atividade que desenvolvo há mais tempo, e na qual obtive maiores técnica e fluência:
compor canções.
que relação tem isso com a questão de ver o todo e a parte simultaneamente?
é simples. reparem bem:
eu comecei com crônicas - algo cuja matéria é o cotidiano extremamente palpável, um gênero onde você pode conhecer a história até mesmo sensorialmente, pode tê-la vivenciado, muitas vezes - e assim é fácil conhecer seu início, miolo e fim, bem como seu tom geral;
daí eu pulei para grandes invenções em prosa, resultado evidente da minha avidez como leitor de ficção, e da minha imaginação infantil hiperativa. mas não é só difícil ver um romance inteiro de uma só vez; é difícil escrever mesmo aquele monte de páginas, difícil pelo lado prático. e assim esse período durou pouco, e resultou em muitos começos e poucos textos completos - a não ser os
textos teatrais e roteiros - no teatro e demais artes de encenação, o que é palpável não é necessariamente o antes, a origem do texto, mas o resultado físico deste, que é a encenação. desse modo, você tem como referência constante ao escrever o ato em que vão-se converter aquelas palavras. e com um norte tão concreto quanto este - pessoas vivas corporificando o seu discurso - fica mais difícil perder o pé.
mas para isso é preciso haver uma intenção e uma viabilidade mínimas de se encenar/filmar aquilo, para que o efeito presentificador da encenação se traduza em referência para o processo criativo.
foi por isso que, tendo me desvinculado do teatro (já larguei o teatro 3 vezes), me voltei para
o conto, talvez a forma literária que mais me fascina. por sua concisão, cada período, ou mesmo palavra, acaba tendo um peso enorme na impressão final. por isso mesmo é tão difícil escrever um conto: é coisa para se reescrever muito, reler muito.
empacado ou matutando eternamente uns tantos contos e umas poucas idéias de romance, fui escrevendo poesia muito passionalmente, muito adolescentemente - apenas, talvez, com uma preocupação não muito comum de análise formal, de crítica da minha própria produção.
...essa auto-crítica logo me levou a perceber que como poeta eu não era lá essas coisas (embora tivesse grandes apreciadoras entre eventuais namoradas e amigas da oitava série : ] ), e como contista eu ia ter de ralar muiiito ainda para que eu mesmo me satisfizesse com o resultado.
foi por essa época que finalmente - e, como disse, um tanto por acaso - cheguei à música.
[não percam num próximo post: a (minha) história da música!]
deu pra perceber o fio do processo?
eu fui passando sucessivamente de gênero a gênero, até achar um que fosse, a um só tempo, conciso o suficiente para ser enxergado como um todo; palpável o suficiente para ter uma conexão ativa com o real; e elaborado o bastante para satisfazer meu fascínio pela forma.
a crônica era algo literariamente frouxo, ou fácil, ou bobo;
o romance era grande demais para ser abarcado de uma só vez, exigiria um método que eu não conhecia e uma disciplina que me custa ter;
no teatro eu não tinha autonomia como escritor, porque não podia garantir que aquilo seria encenado, nem tinha como fazê-lo sozinho (mesmo um monólogo precisa de palco, luz, som, figurino ou ao menos, em última instância, de público);
a poesia não era algo que eu estivesse habituado a ler e, por isso mesmo, estava mais longe de dominar suas peculiaridades - e isso por não me interessar tanto mesmo pelo gênero. além do que as palavras ali eram tão fortes, o tamanho do texto ficou de tal forma reduzido, que seria muita leviandade escrever sem me preparar melhor.
o mesmo acontecia, em menor grau, com o conto - eu podia enxergá-lo como um todo, mas as frações, as palavras eram tão carregadas de sentido e expressão, que se tornava torturante a busca da 'palavra exata', desesperadora a paranóia de reescrever e reescrever.
e a música veio me salvar.
a canção é uma forma enxuta, como a poesia e o conto, onde as palavras têm suma importância... mas não estão sozinhas na produção do sentido: dividem o peso da tarefa com o elemento musical.
esse elemento dá margem ainda a uma presentificação semelhante àquela do teatro, mas com uma vantagem: eu posso tocar a música sozinho, e num período curto de tempo. posso me sentar ao lado de uma pessoa e cantar durante quatro minutos - e vai ser algo sensorial, extremamente concreto.
finalmente, embora a canção possa apresentar um alto grau de elaboração formal e estética, isso não se dá apenas no âmbito do texto escrito, nem no âmbito musical - mas sim, e principalmente, no diálogo entre os dois.
nessa peculiaridade da canção harmonizaram-se meus dilemas.
a ênfase na imbricação da palavra com a música 'aliviava o fardo' de cada uma delas. e o 'segredo' da canção estava no estudo e desenvolvimento desse recurso específico: da interação entre palavra e música.
a feitura da parte escrita era apoiada pela da parte musical, e vice-versa - havendo, desse modo, duas vias simultâneas de estruturação do texto final - favorecendo a fluência do texto, e atenuando o problema apresentado pelo Kafka.
ou seja: eu tinha achado um gênero rico em forma e de forte cunho sensorial; pequeno em tamanho e grande em possibilidades! um gênero sob medida para meu criterioso amor ao texto, minha relativa indisciplina, e meu apego à interação física do receptor com a obra.
e nele me embrenhei até o pescoço. com excelentes resultados, hoje posso tranqüilamente constatar.
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o desconhecimento de toda essa trajetória não impediria meus colegas espancadores de teclados de entender minha proposição sobre o processo criativo e a estrutura do texto; mas certamente os impediu de saber como foi que cheguei a perceber as coisas desse modo.
já acompanhando a exposição passo-a-passo que acabo de fazer dá pra ver que foi um caminho lógico e simples; levou só vinte e oito anos...
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...e levará muitos outros mais.
resolvi publicar aqui o texto sobre dificuldade de começar porque foi ela, em parte, a culpada pela minha ausência tão longa aqui do humdeabril. acabei fazendo uma 'breve história do texto' - também muito adequada, a meu ver, para este 'retorno'.
quem leu até este ponto sabe que eu nunca parei de fato. porque 'escrever é um ato cíclico'. porque eu observo, penso e trabalho essas questões todos os dias.
por gosto mesmo : ]
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e quem quiser me acompanhar
ou só saber por onde ando nessa história
seja hoje e sempre muito bem-vindo ao humdeabril!
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beijos paratodos
Dimitri
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