pra que serve a fome
há alguns dias descobri em que medida a fome e outros gatilhos biológicos tem sua serventia;
uma prima mais velha morreu, eu estava triste e a Graziela me consolava e de súbito eu senti muita fome.
era de manhã (umas 9 e tanto) e eu não tinha comido nada. o impulso de me auto-censurar por aquele sentimento tão inapropriado deu lugar à constatação de que é pra isso que a gente tem fome.
é pra não ficar paralisado com a morte de alguém e ir buscar um copo de leite.
[olha a minha prima eu não a via muito, tenho lembranças muito legais dela, ela era muito irônica e tinha cabelos grisalhos curtos, não se preocupem por isso.]
também não é frieza, se alguém ainda puder pensar assim. eu teria mesmo me censurado.
eu mesmo me censuraria pela fome, mas estava muito ocupado pensando na minha prima
e na finalidade da fome e de outros impulsos da gente
e não estava nem me importando quais das coisas que passavam pela minha cabeça eram apropriadas ou não...
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Mantovani e eu freqüentemente filosofamos sobre as possíveis benesses de não se precisar comer, ou estar imune ao desejo por sexo.
nos divertimos muito, mas acho que nunca percebemos o quanto a vida seria diferente sem desejo irracional.
o quanto o mundo seria
outro
...
os sofrimentos do jovem werther são trágicos e lindos e só existem porque ele não precisa comer ou ir ao banheiro. tudo muito bonito mesmo, eu acho lindo, mas não me matei, sobrevivi à minha adolescência
como o Mantovani e a maioria das pessoas. (foi difícil.)
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só quem tem tempo pra refletir é que cogita o suicídio
[...sobre isso a gente fala outro dia]
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também há apenas alguns dias eu explicava que enxergo o instinto de sobrevivência (do qual, em última instância, derivam todos os outros) como uma mola fortíssima, tendo por ponto de origem a vida
de tal modo que nos é facultado apenas forçá-la em direção à morte. todo movimento em direção à morte é contrário à força irresistível da nossa condição humana irracional.
não acho mesmo que ninguém precise se preocupar em manter-se vivo. é preciso esforço justamente se a intenção for seguir na direção contrária.
por mais que se tensione a mola, basta um instante de abandono pra que ela nos puxe de volta à vida, a respiração, à comida, ao sexo.
etc.
[não tenho a menor vontade de morrer
agora
como a maioria das pessoas
agora
com licença, eu vou almoçar.]
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