achados-e-perdidos
Deixando pra trás a pouca luz do dia que começava, entrou na boate deserta. Há tão pouco tempo estivera ali, bebendo, dançando, e agora estranhava o lugar. E não era pelas luzes acesas, nem porque o lugar assim parecia pequeno, menor vazio do que fora cheio.
Um faxineiro, com uma pá, recolhia preguiçosamente pedaços de copos e guimbas de cigarro. O homem dirigiu-se a ele:
- Queria falar com o Bastos.
- Aqui só tem eu a essa hora, respondeu o funcionário.
- Eu telefonei e me disseram que viesse.
Via-se que ao homem custava manter a calma.
- É achados-e-perdidos, acrescentou, disseram para ver com o Bastos.
O faxineiro parou o que estava fazendo e estudou o outro, a pá meio-cheia suspensa numa das mãos.
- O Bastos sou eu mesmo. Mas eu não sou encarregado disso. Aqui não tem isso não.
- Olha, eu já voltei até aqui. Eu telefonei. É caso urgente...
- O que você perdeu?, interrompeu o Bastos.
Apesar da visível ansiedade, o homem demorou a responder. Parecia embaraçado, e apenas ao cabo de alguns instantes conseguiu balbuciar:
- Era desse tamanho... de preto... assim...
- Mas o quê?
O homem baixou os olhos e respondeu acabrunhado:
- Eu...
Olhou para o faxineiro e este não dava o menor sinal de tê-lo compreendido. Suspirou e, conformado, prosseguiu com a explicação:
- Eu perdi eu. Ou me perdi, como queira. Sou louro, estava com uma calça escura, tenho um sinal no...
- Ah não.
Bastos meneou a cabeça em desaprovação. Saiu resmungando por uma porta, ouviu-se um ruído de vidro quebrado, voltou com a pá vazia. Retomou taciturno a limpeza.
O homem, que assistira com mal-disfarçada impaciência à toda aquela movimentação, acercou-se dele e insisitu:
- Por favor, escute, tente lembrar... Um sinal assim no braço, em forma de disco... Imagine minha supresa ao dar com o espelho do elevador... Juro que isso nunca me aconteceu! Tente pôr-se em meu lugar...
- Acontece, irritou-se o Bastos, acontece que eu não sou desses. Tomo minhas cervejas, é claro; mas faço meu trabalho. Eu sei a minha medida. Vocês vêm aqui, enchem a cara, perdem a linha. Vocês que têm a vida ganha. Depois é por favor Bastos, minha carteira, me ajude, meus documentos, minhas chaves Bastos!
- Mas, se estou dizendo que é a primeira vez! Talvez eu tenha mesmo me excedido, uma comemoração, um contrato que assinamos, o jogo de ontem...
- E ainda torce praquele time?
- Não, pro seu, pro seu! Nós perdemos!
O Bastos encarou o outro um instante.
- Eu não gosto de futebol, falou, e tornou a recolher cacos.
O outro tomou fôlego e investiu novamente, decidido:
- Veja, eu sei que você não tem nada com isso...
- E não tenho mesmo!
- ...sei que não é de sua responsabilidade, mas eu estou pedindo, entenda, é uma situação muito desagradável, este não sou eu, e eu só posso mesmo ter ficado por aqui, tenho certeza.
- Tem é muita certeza. Pra alguém na sua situação.
- Por favor. Já procurei por toda parte. Não tenho mais a quem recorrer.
Bastos descansou a pá sobre uma mesa, e de braços cruzados perguntou:
- Fala aí como você é. Era.
- Louro, gordinho...
- Isso você ainda tá.
- Mas eu sou mais baixinho! E o sujeito é até magro, isso aqui – pinçou umas gorduras da barriga entre polegar e indicador – isso aqui é só pança, eu sou aquele tipo de gordinho por igual sabe? Gordinho compacto.
- Hum. Que mais?
- Tem o sinal que eu falei, no braço esquerdo. Olha, vocês não acham tantos assim por vez, não é mesmo? Será que ainda não deu pra me identificar?
- Esse que é o negócio; não acharam nenhum hoje.
- Como, nenhum? Então onde é que eu fui parar?
O faxineiro deu de ombros.
- Vai ver, um outro sujeito saiu com você. Vai ver foi esse aí, disse, apontando para o interlocutor com o queixo.
- Mas, como. Este aqui é bem mais alto, está com uma camisa verde, não dava pra ele confundir! Eu de preto, ele, de verde-limão...
Bastos eximiu-se de lembrar ao homem que ele próprio tinha se confundido. Limitou-se a reafirmar:
- Pois é. Mas não achamos nenhum.
O Homem trocado segurou entre mãos alheias a cabeça que não era sua e lamentou-se na voz de um estranho:
- E agora como eu faço?
- Eu que sei, tornou o Bastos, vai ficando com esse aí, não é até mais alto, consolou.
- Alto demais! Alto, comprido; bato a cabeça em tudo, esbarro nas coisas, mal consegui dirigir até aqui...
- Com o tempo, acostuma.
- Mas os meus amigos, o pessoal do trabalho, minha mãe! O que é que a minha mãe vai pensar!
Dando-se conta pela primeira vez das graves implicações de sua presente condição, o homem caiu sentado numa poltrona – que aliás lhe pareceu pequena e incômoda.
Mais que estranheza, tudo naquele corpo lhe causava repulsa. Jamais se acostumaria. Não àquela orelha. Àquele joelho. Camisa verde-limão.
- Tem certeza de que não acharam nada?
- Bem, hesitou o faxineiro, só...
- Sim?, inquiriu o homem, ansioso.
- Só um.
- E só agora você diz! Sou eu?
- É uma mulher.
O homem não disse nada de imediato. Na parede espelhada à sua frente, o rosto desconhecido exibia um desconforto igual ao seu. Quando finalmente falou, os lábios do outro se moveram junto:
- Bastos, essa mulher...
- O que tem?
- Ela é bonita?
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