meu caro amigo Murilo,
quando, há coisa de alguns meses, nossa amiga Catarina - poeta como você
foi escalada para o segundo dia de leituras daquele grande evento da palavra
todos estranharam: por que no segundo, e não no primeiro, para o qual estavam escalados todos os seus amigos, seus pares mais próximos na vida e no estilo - inclusive você?
nossa amiga, bem sabemos, é pessoa de modos suaves e sutis - mesmo no palco (ou até mais nele, dado seu apreço por um certo tipo de rigor)
é ela avessa a histrionismos, menos por desaprovação do que por incompatibilidade de projeto
pois estava, não obstante, escalada para o segundo dia, dia de cantos e cocares e urros e seduções.
no primeiro dia, assistimos juntos às leituras de nossos amigos - inclusive a tua própria - e, compreensivelmente, sentia nela (e por ela) certa frustração de não estar naturalmente inserida ali, e alguma apreensão pela inclusão entre pares-como-díspares no dia seguinte.
no dia seguinte
no dia seguinte lá estávamos eu e Daniel
dos amigos que haviam lido no dia anterior, por motivos diversos creio que nenhum retornou (você tampouco)
estávamos eu e Daniel e Catarina em sua múltipla ansiedade - a natural de se apresentar, a da pouca afinidade estética com os companheiros de palco, e ainda outras de ordem mais particular, que merecem menção específica:
seu texto, inédito, longo, único - quando a maioria optara por ler peças curtas, já lançadas em livro e experimentadas ao vivo - era ainda novo, novo na forma pela primeira vez experimentada, tateada, novo nos sentimentos - porque tratava de um acidente, e de uma love story, e era o acidente de Daniel, e a love story, de Daniel com ela mesma? de Alexandre com Manuela? (que estavam também no carro e sim, o acidente selou sua love story, mas era outra)
tratava assim do mais pessoal, e era longo, e tinha a forma, e tudo isso e nossa amiga ali, entre os cocares, as seduções, as danças da moda, o canto, a galhofa, o humor, o poema stand-up, o poema experiente calejado, nossa amiga ali, a parecer frágil de fora - mas isso não é, já então se sabia - uma luz por cima, um microfone à frente, a plateia em volta, teatro de arena, arena, mas que lugar pra se jogar um poeta, um poema, uma pessoa, que vai falar do que lhe é caro, vai se expor, eu também subo em palco, também entro em arenas, querido muito querido Murilo, também você não se pergunta, logo antes, por que me meti nisto, por que insisto em me pôr de novo e de novo em tal situação?
pois ela adentrou a arena, os leões eram outros, que bobagem essa analogia, mas então, ela adentrou o palco, tomou o grande fôlego preciso (que só renovaria uma vez ao longo da longa leitura) e, sob o olhar da plateia, que tinha também meu olhar e o de Daniel - ainda com cicatrizes aparentes do poema, digo, do acidente, que ele quase morreu no acidente, digo, no poema - sob esses olhares e tantos outros ela
abriu
a
boca
e disse uma a uma as palavras que até pouco antes escolhia ainda com tanta minúcia
e eram muitas palavras muitas frases muitas vozes Catarina Alexandre Daniel preso nas ferragens, o que foi que você sentiu? o que sentiu enquanto lia aquele poema?
não sei o que ela sentiu, mas sei o que eu senti
eu a senti forte, segura, quase agressiva, com uma dureza e decisão que nem sempre deixa aflorar, que nem sempre lhe assaltam - que não teria, talvez, estivesse no dia anterior, estivesse relaxada entre amigos, entre as vozes consonantes de costume, no desarmar-se da familiaridade.
mas estava no entanto com os sentidos alertas, as armas prontas, calma e segura e quase agressiva, eu a senti forte, e ela desfiou na sua voz a sua voz e as outras vozes que escolheu tomar no poema, e era ela quem parecia tomada, e o texto existia diante de nós, milagre, não, palavra, corpo de som e as vozes se sucedendo nas palavras e o texto longo e nenhum excesso, e Daniel ali ao meu lado, as cicatrizes, a love story recente, e eu que os amo a ambos, e a ela de uma amor antigo e variado, e a apreensão será que era mais minha do que dela, e os cocares, os holofotes, as holotúrias, no fundo do mar, aquário, arena, vitrine, palco circular, por que nos submetemos a isso? mas é bom, não somos nós, é o que dizemos, era o texto, o texto existia, diante de nós, meu deus que bom, nem tenho deus mas tinha aquele texto, tudo aquilo que estava ali, toda aquela verdade inventada, aquelas vozes apropriadas, nossa amiga pequena e firme, seu texto novo, a love story, o ser humano não tem defesa contra certas coisas (como o cheiro, mas isso não vem ao caso)
uma pausa
apenas
para retomar o fôlego - não por tê-lo perdido, mas tão somente porque o texto assim pedia
segunda parte, descida vertiginosa, artifício arbitrário, a força da forma e do método se impondo sobre a ilusão de verdade, nada de narrativa, isto é um poema, isto é premeditado, é tudo mentira, é verdade, rigor, vertigem, de um segundo fôlego até o final.
sei bem o que senti.
sei bem.
sei bem.
...
Murilo tudo isso é pra contar:
de um tal modo me fez sentir novamente, há algumas horas
a tua leitura, desta vez.
isto não é um poema.
isso é muito sério
isso é muito sério...
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