meus amigos são um barato

I.

horas depois eu passo na bar e eles continuam em volta da mesma mesa, já bem embriagados.

de pé, Mantovani - que não sabe tocar violão - toca violão, provocando risadas bêbadas em si mesmo e nos outros convivas, que o observam e estimulam, animados.

também me divirto com a cena, quando de súbito os acordes me lembram uma música.

(lembro-me vivamente da excitação e da apreensão de que Mantovani parasse de tocar antes que eu pudesse ver se a música encaixava mesmo nos acordes.)

Mantovani (rindo meio nervosamente, um pouco encabulado ao se perceber tocando violão, e por isso propenso a parar): - huhum pois é, Dimitri, toco muiiito, né? huhuhum.

Dimitri (tentando persuadi-lo a continuar): - não, cara, tá muito bom mesmo. e sabe que isso que você tá tocando dá pra cantar uma música?

Mantovani (agora mais motivado, curioso): - é mesmo? huhuhum qual?

e eu começo: - "as almofadas são feitas de algodããão / mas o chão não é feito / de algodão"*

as pessoas em volta, em diferentes estágios de embriaguez etílica, têm um segundo de estranhamento, mas logo começam a rir.

- "...mas ele também é feito de uma coisa que eu também sei o que é"

percebo, satisfeito, que a música está indo bem. empolgado, canto afetando uma falsa bebedeira - que eu estava até bem sóbrio -; repito cada estrofe duas vezes e acrescento uns yeahyeahyeahs aqui e ali.

Mantovani, também empolgado, de repente começa a tocar muito bem, alterando a segunda parte para uma seqüência de acordes de quintas (os famosos "power chords" do punk*), que combinam/inspiram meus yeahyeahs.

"nossa, Manti tá mandando bem! preciso aprender essa versão", pensei.

com mais alguns yeahs e um derradeiro power chord seguido de esfregada à esmo de todas as cordas (a la final de música em show de rock) terminamos a canção, entre aplausos e risos.

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II.

acho um plástico como aqueles que têm mostarda e catchup em bares, mas esse tinha metade suco de laranja, metade de maracujá. nota-se que as metades deveriam estar separadas, pois o líqüido estaria congelado; todavia este derreteu e os sucos se misturaram. cada metade do saquinho plástico tinha desenhado o rosto de um palhaço.

ainda olho para o objeto, meio intrigado, meio propenso a jogá-lo fora, quando o Mantovani o toma de minha mão e explica:

- não, não, cara, esses são os palhaços Tichu e Paulinho.

- ?

- ...a famosa dupla TichuPaulinho. "Tichu sabe todas as brincadeiras, mas Paulinho é "V" Violento!"

esse era o slogan dos palhaços, personagens de um antigo programa ruim de tv.

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NOTAS

* o grande hit "as almofadas" foi composto pela Silvia aos 3-4 anos de idade.

** no livro "mate-me por favor", que conta a história do punk através de uma imensa colagem de depoimentos de personagens do movimento, volta e meia as pessoas - músicos - se referem aos "power chords":

power chord é um tipo de acorde de construção simples e que omite a nota da "terça" (bem simplesmente, a terceira. por exemplo: se "dó" é a primeira, "ré" será a segunda e "mi", a terceira ou terça), que é a nota que diferencia à primeira vista os acordes maiores dos menores.

justamente por essa simplicidade mecânica e harmônica, o power chord é praticamente tudo o que os punks usam em sua música.

pois bem: no "mate-me por favor", toda vez que o termo power chord aparece, ele é traduzido por... "acordes porrada"!

por exemplo, se no original Johnny Ramone dizia "eu só sabia fazer power chords, por isso tivemos de tocar do jeito que dava", na tradução estará "eu só sabia fazer acordes porrada..."!!!

perdoem o extenso rodapé, mas esse tipo de coisa - e esse caso em particular - sempre me deixa puto.

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boa noite! =]

bem-vinda de volta à sua casa, Silvia!

2 comentários:

Beatriz Antunes disse...

O Mantovani é demais. Aprendeu várias línguas sem ninguém ensinar e agora também é autodidata em violão? Meus amigos são foda, Dimi, concordo com você. Quanto à tradução de power chord pra acorde porrada, além de me parecer ótimo (sério, eu gostei) me lembrou de uma clássica que cometeram contra o Freud na edição de suas obras completas no Brasil. Ele fez uma palestra famosa chamada Psicanálise Selvagem, que se refere às pessoas que psicanalisavam os outros sem conhecimento, para exemplificar a rápida popularização da prática. Bem, mas aí o tradutor deixou como Psicanálise Silvestre, por algum motivo que só quem fala alemão poderia nos explicar. Fico imaginando se o Bambi experimentou muitas sessões, se a Branca de Neve era convidada também. Lindo.

Rafael Mantovani disse...

caralho, eu quero ser autodidata em violão! "as almofadas são feitas de algodããão..."

não sei se você sabe mas eu tentei aprender violão quando era criança, só que os resultados foram menos promissores que os do seu sonho... digamos que minha coordenação motora atrapalhou um pouco.

gosto do modo como seus sonhos sempre têm explicações racionais e científicas sustentáveis (por exemplo para o fato de os dois sucos não se misturarem no saquinho)

obrigado por ter sonhado comigo, volte sempre! :-)