a música é no tempo

Deu em O Globo:

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RECITAL DE ÓRGÃO PARA OS MUITO PACIENTES
09/05/2006

Planejada para ser executada em 639 anos, composição de John Cage muda de acorde em igreja na Alemanha

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Se você perdeu o acontecimento musical da última sexta-feira na Igreja St. Burchardi, em Halberstadt, na Alemanha, não se preocupe. Sempre haverá 2008. E o ano seguinte. E o outro. Na verdade, ainda há cerca de seis séculos para se escutar o desenvolvimento do trabalho, uma versão da composição de John Cage “As slow as possible”. Um grupo de músicos e incentivadores da cidade deu ao título uma interpretação ridiculamente extrema, estendendo o concerto por 639 anos.

Como o movimento imperceptível de uma geleira, uma mudança de acorde foi feita na última sexta-feira. Dois tubos foram retirados do órgão rudimentar (que está sendo construído à medida que a peça é executada, com tubos adicionados e removidos quando necessário), eliminando um par de notas mi. Devotos de Cage, músicos e curiosos foram a Halberstadt, a sudoeste de Berlim.

— Nessas horas, a aceleração estraga tudo — disse Heinz-Klaus Metzger, proeminente musicólogo cujos comentários numa conferência sobre órgão há nove anos impulsionaram o projeto. — Começar um recital com a perspectiva de que ele dure mais da metade de um milênio é uma espécie de negação do estilo de vida de hoje.

As únicas limitações na duração do concerto são a durabilidade do órgão e o desejo das futuras gerações. Ele já é o mais longo do mundo, mesmo que mal tenha começado. O concerto se iniciou no dia 5 de setembro de 2001, quando Cage teria completado 89 anos. Mas nada foi ouvido porque o arranjo musical começa com uma pausa — de 20 meses. Apenas em 3 de fevereiro de 2003 o primeiro acorde foi tocado. Notas soam ou cessam uma ou duas vezes por ano, sempre no quinto dia do mês, para homenagear Cage, morto em 1992. São oito movimentos, e Cage especificou que ao menos um seja repetido. Cada movimento dura 71 anos, quatro a menos do que a expectativa média de vida do homem alemão.

St. Burchardi está aberta seis dias por semana, e as notas vêm soando continuamente, por um sistema de foles e tubos de ar. O local atrai gente que busca um momento de comunicação com o espírito de Cage. Um estudante pediu para passar uma noite na igreja. Um escritor canadense que está ficando cego e fazendo viagens para experimentar seus outros sentidos chegou na quinta-feira.

O espírito do projeto é manter as particularidades de Cage, cujas obras expandiram os limites da música. Um de seus principais trabalhos é “4’33” — no qual os intérpretes sentam-se silenciosamente por quatro minutos e 33 segundos. Muitos o consideram mais um filósofo do que um músico. Para Christof Hallegger, membro da fundação por trás do projeto, ele é um enunciado mais sobre tempo do que sobre música, e uma lembrança da mortalidade:

— É feito pelos homens, e é mais longo que sua própria vida — disse Hallegger.

Mas para alguns seu significado é nulo. Rainer Neugebauer, da fundação, disse que é difícil convencer algumas pessoas locais do valor do projeto:

— Não soa como Beethoven.

Cage escreveu a peça para piano como “As slow as possible” ou “ASLSP” em 1985, adaptando-a para órgão após dois anos, quando ficou conhecida como “Organ2/ASLSP”. Numa conferência em Trossingen, o musicólogo Metzger lançou a questão: se, teoricamente, uma nota de órgão pode soar indefinidamente, desde que a tecla esteja pressionada, qual o limite para uma peça como “ASLSP”? Dias? Semanas? Anos? Cage não especificou uma duração.

— Disse isso quase como uma piada — contou Metzger.

Organistas entraram na discussão.

— O limite é quanto dura um órgão — disse um deles.

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Gerador para que a música não pare por falta de energia

Michael Praetorius, compositor dos séculos XVI e XVII, escreveu que o órgão com o primeiro teclado com arranjo moderno foi construído em 1361 na catedral de Halberstadt. Subtraído esse número do ano 2000 da virada do milênio, o resultado é 639. E assim foi resolvido o tempo de duração do concerto. Mas o projeto não seguiu sem desentendimentos, como o financiamento. Agora, cerca de cem mil euros já foram arrecadados. O que todos concordam é que nada pode interferir na música. Células de energia solar e um gerador estão a postos se a eletricidade for interrompida. Até agora, as notas fluíram sem impedimento.

— É muito importante — disse Georg Bandarau, diretor de marketing do projeto. — É o que John Cage escreveu.

4 comentários:

Graziela Grise disse...

Amor, a gente precisa ir lá!!

Um ASLSP beijo pra você, que é pra durar até a gente se encontrar de novo...

ana k. disse...

agora vc estapolou...

Anônimo disse...

AMEI a notícia!
Fiquei interessadíssima!

Anônimo disse...

Achava essa história de "concerto do silêncio" uma baboseira... tipo chacota de gente que só quer mídia. Enroladores que na verdade não tem nada a dizer.
Mas, na verdade, me parece que é uma questão muito mais filosófica e existencial do que musical...

Um teórico da comunicação, Hans-Magnus Enzensberger, da Escola Nova Esquerda Alemã, traz duras críticas a Marshall McLuhan a o que ele denomina uma busguesi que não tem nada a dizer. Vou ta mendar uma mail com a citação do cara...